AFROBRASILIDADE MAIS QUE UM SONHO!

Zakeu A. Zengo

Originalmente publicado no jornal AFIRMA
Publicação dos estudantes de Ciências Sociais da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
No.1, Ano I - Maio/Junho de 1999.

Ao considerar a História Universal como exposição do Espírito ao movimento da autoconsciência, Hegel deixou a África (e por injunção a América Latina) fora do seu conceito de História Universal. Estes mundos de negros e índios apenas entrariam no coro dessa História se fossem capazes de provocar a consciência de si e de imporem suas liberdades. A África – e por conseqüência a raça negra – é, para Hegel, um "mundo criança, envolto na negrura da noite", na opacidade cultural. Deste modo Hegel criara as condições intelectuais de recusa a ouvir o ser e os sonidos negros, e a entender a fabulosa luminosidade do ser dentro da escuridão da cútis negra e índia!

Essa foi, está claro, uma grosseira falácia intelectual. Dessas que só merecem memória nestas linhas porque advindas de uma pena de um gênio tão poderoso como foi Hegel. Hoje, séculos de história após, somos testemunhas de uma História universal que viu nascer a comunhão de Espíritos que, por causa da sua complexa densidade antropológica, se posiciona contra a estreiteza conceitual do Espírito universal da racionalidade hegeliana do século XIX. O Espírito afro-brasileiro constitui um exemplo!

O fenômeno antropológico da Afrobrasilidade estabelece no plano da nossa História privada a exigência de uma nova racionalidade fundada no princípio do nivelamento das humanidades raça-culturais. A sua especificidade exige que sejamos pacientes e corajosos no exercício da única racionalidade interessada no princípio de uma identidade nacional para o Brasil. Nosso ser-em-si se dispõe não na individualidade do espírito que se quer branco, negro, índio ou entre estes, mas num esquema existencial que compreende - citando o poeta negro brasileiro do século XIX e contemporâneo de Hegel, Luís Gama, que contra um racismo branco que quer ver no negro a imagem do bode, proclama:

Aqui n’esta boa terra
Marram todos, tudo berra
Nobres, condes e duquesas,
Ricas damas e marquesas,
Deputados, senadores
..............
Frades, bispos, cardeais
............
Em todos há meus parentes
Entre a brava militança
Fulge e brilha alta bodança.

Estes versos proclamam a ideologia da Afrobrasilidade que não se confunde com o Brasil racialmente marrom dos sociólogos da Sorbone. A poderosa simbiose desse epíteto, que se impõe ao Brasil como condição do seu "Espírito absoluto", abre espaço para um total esvaziamento de qualquer racionalidade prisioneira do apartheid racial como a condição própria da identidade brasileira. O verdadeiro tônus racional do conceito de Afrobrasilidade está não nas condições histórico-sociais do Brasil que nos foi legado, mas nas determinações políticas e culturais capazes de desfazer o sonho de quem aposta num Brasil das diferenças, do apartheid racial e cultural. Não há como fazer, no Brasil, uma revolução de progresso senão a da Afrobrasilidade!

Por sua história específica e também por sua problemática peculiar na construção de uma identidade de encontros,  o conceito de Afrobrasilidade não corresponde, para o Brasil, ao de seus congêneres europeus, americanos ou caribenhos. Por aqui, Afrobrasilidade corresponde mais a um verdadeiro esgotamento de diferenças numa unidade que se quer nacional e que se nega a ser outra coisa senão Brasil. Aqui, à diferença de lá, Afrobrasilidade é sinônimo de eliminação de toda a distância entre os homens de várias raças para entrar em vigor uma categoria carnavalesca um tanto mais específica. Esta é, como observou Baktin, "o livre contato familiar entre os homens" (M. Baktin, 1981) que dançam os mesmos ritmos, comungam a mesma mesa, sonham os mesmos sonhos e dividem as mesmas perplexidades. É como o poeta negro confirma (Luís Gama, 1904):

Pois se todos têm rabicho
Para que tanto capricho?
Cesse pois a matinada,
Porque tudo é bodarrada!

Vinte anos antes da abolição, este poeta enseja já nesse verso uma nivelação que seja retrato de uma harmônica Afrobrasilidade cultural e racial no Brasil. Mas até hoje ainda pesa sobre esse ensejo os pecados de um Brasil que, parece, não se querer tão brasileiro assim. Que se quer condenado a sua condição quistificada à base de diferenças sócio-econômicas fortemente margeadas pela posição das raças em seu interior. Um Brasil incapaz de transcender, enquanto consciência (Espírito), a linha da nitidez de sua multicoloridade racial. Conflitos raciais durarão o quanto durar esta "cultura" que nos ata vergonhosamente à um passado histórico sem glórias.

Por isso prevaleça a África no Brasil; mas acima de tudo prevaleça o negro no branco, o branco no amarelo, e este no primeiro, sem preconceitos que militam contra a nossa inevitável condição afro-brasileira. É preciso ser mais do que branco, negro, amarelo ou estar entre esses. É preciso ser brasileiro para que se perceba o quanto precisamos de uma esperança. Estou convencido de que na possibilidade desse sonho repousa o Espírito da plena efetividade de um Brasil para todos, um Brasil rimance!

Terminemos com Hegel, ao avesso. No dizer desse filósofo, rimance é um "colar de pérolas", na qual é possível perceber que cada quadro particular se mostra acabado e completo em si mesmo, enquanto o conjunto forma um todo harmônico. Tal qual, nasça o Brasil rimance que arrancará das diferenças culturais o seu direto de ser para todos, dando voz e vez ao sonho do Afrobrasilidade.

 Volta à Página principal
Por favor mande seu comentário
 AQUI