A LIBERDADE NA ÉTICA DE ESPINOZA
1. Natureza da Questão
A caraterística fundamental do pensamento
de Espinoza é a síntese que realizou entre duas concepções
antitéticas do
pensamento tradicional: a concepção metafísico-teológica
e a concepção científica do mundo. Ao assim fazer,
reduziu toda a
existência à ordem necessária na Natureza, à
identidade entre Necessidade, Mecanicismo e Razão.
Com efeito; ao contrário de seus contemporâneos,
como Descartes, para Espinoza o ponto de fusão entre teologia
metafísica, de um lado, e a ciência da Natureza, de outro
lado, é a Substância, cujo significado autêntico está
na sua referência
a Deus: “Não outra substância, isto é, outra
realidade independente que não seja o próprio Deus”.
Mas de modo mais radical Espinoza reconduz à essa noção
não só a multiplicidade dos seres, mas o próprio mundo
humano: as paixões e razão humanas, de tal modo fazendo coincidir
os decretos de Deus com as leis da Natureza e vice-versa.
Espinoza concebe a ação dessa
Substância (Deus) como não tendo caráter arbitrário
e voluntário, e se nega a admitir a
existência de qualquer caráter finalista para o mundo,
baseado no que seriam decretos divino Antes, Deus e a Natureza são
realidade implicadas entre si, atinentes àquilo que ele considera
ordem geométrica do mundo.
Com essa Filosofia da Necessidade Espinoza
busca prestar um serviço à Liberdade do homem, enquanto dependente
não
mais do tradicional livre- arbítrio, mas tão somente
do conhecimento da ordem necessária, aquela em virtude da qual o
homem
deixa agir em si mesmo a necesidade da ordem divina do mundo.
2. Substância e Liberdade
A doutrina espinoziana supõe no
seu centro a necessidade de um Ser perfeitíssimo , na qual está
a verdade, isto é, a
essência objetiva das coisas e para a qual a mente deve dirigir-se
na busca de uma dada idéia verdadeira. Este é o ponto de
partida do método espinoziano, ou seja, a busca dessa idéia
perfeitíssima, que é Deus, exatamente o primeiro motivo de
sua
“Ética”.
Nesta, Espinoza parte da pressuposição
básica de que Deus é única substância que existe
em si e é concebida por si, a
qual, para existir “não tem necessidade de nenhuma outra realidade
e que para ser concebida não necessita de nenhum outro
conceito”. Esta Substância é livre, uma vez que não
há nenhuma outra substância que a limite, e portanto, consta
de infinitos
atributos. Devido a esta infinidade de atributos da essência
divina, derivam dela infinitas coisas de infinitos modos, de sorte que,
sendo incausado, mas causa sui, é causa eficiente de tudo o
que existe.
Para Espinoza nada pode existir fora de Deus
e nada pode existir senão como um modo de Deus. Contudo, ele julga
que
Deus não produz os infinitos modos mediante uma ação
criadora arbitrária ou voluntária. Mas dele tudo procede
devido
unicamente às leis da sua natureza. E a liberdade da ação
divina, por isso, consiste na sua necessidade, ou seja, na sua
perfeitíssima conformidade com a natureza divina. Assim entendido,
Deus não tem vontade livre nem indiferente, mas que sua
potência identifica-se com sua essência e tudo aquilo que
ele pode, existe necessariamente: “tudo é necessário enquanto
é
necessariamente determinado pela necessária natureza de Deus”.
2.1- A Liberdade Divina
Para Espinoza a liberdade consiste nada mais
que na independência de toda a coação exterior; ora,
só Deus tem autonomia
sobre todas as coisas. Portanto, somente Deus é Ser livre, pois,
sendo ele a substância única e infinita, fora do qual não
existe
nada, é absolutamente independente e nada exterior pode obrigar-lhe
a agir, nem determinar ou limitar a sua ação. No LivroI
da Ética, proposição 18, diz: “somente
Deus opera por liberdade de natureza, não obrigado por nada(...)”.
Portanto, Deus opera livremente porque age
por necessidade das leis da sua própria natureza e sem ser obrigado
a agir por
nada . Esta é, por definição, a única liberdade
possível para Espinoza: “se diz livre uma coisa que existe somente
por
necessidade de sua natureza e se determina a si mesma a agir, embora,
quanto a liberdade de vontade, “não pode dizer-se
causa livre, senão necessária e obrigada” . Desse modo,
Deus não tem a liberdade de eleição, nem pode agir
contra a sua
própria natureza, ou seja, ele não pode propor-se nenhum
fim que seja exterior a si mesmo , mas unicamente sob a condição
da Sua natureza.
Com efeito, em Deus se conjugam as noções
de liberdade e de necessidade de natureza , do mesmo modo que não
existe
nas coisas contingência nem liberdade, mas apenas absoluta necessidade
. Fazendo então consistir no “agir segundo as leis da
própria natureza” e não na “deliberação
mediata” da doutrina clássica (aristotélica) ou na “escolha
entre várias possibilidades”
(T. de Aquino), ou ainda na “indeterminação” de Descartes,
Espinoza afasta-se de toda a tradição filosófica que
o precedeu.
No Apêndice da primeira parte da Ética
procura mostrar que a crença comum, segundo a qual Deus age com
livre-arbítrio, se deve à ignorância de um fato
importante: as verdadeiras causas dos fenômenos e ao antropormofismo.
Tanto
assim que, conforme ele julga, a liberdade não é um atributo
de Deus, mas uma simples propriedade da Sua natureza, ou seja,
um dos aspectos da Substância Única, já que por
atributo só se entende “tudo aquilo que o intelecto aprende como
constitutivo da essência da Substância”.
3. Liberdade Humana, ou, liberdade como aceitação da necessidade.
Negar a liberdade da vontade humana é
uma das teses caraterísticas e básicas do sistema espinozista.
Espinoza levanta
vários argumentos em favor da tese, destacando-se, para esta
empresa, o de que a liberdade é uma ilusão, fruto da
ignorância
das verdadeiras causas.
Com efeito; a razão por detrás
desse motivo é de ordem ontológica, a saber, a vontade não
pode ser livre porque não é
propriamente uma faculdade, uma modalidade do pensamento e, como
tal, tem como causa o próprio pensamento. O homem
não pode, por isso, ser um ser de liberdade . Isto posto, afirma:
"Não há na alma vontade alguma absoluta ou livre; mas a alma é determinada a querer isto ou aquilo por uma causa que é também determinada por outra, e esta outra o é por sua vez por outra, e assim ao infinito".
E ainda:
A Alma é um modo definido do pensar (I, Proposição
10), e assim, não pode ser causa livre (I, Proposição
18, Corolário II) ,
ou, por outras palavras, não pode ter uma faculdade absoluta
de querer ou de não querer; mas deve ser determinada a querer
isto ou aquilo por uma causa (I, Proposição 28), a qual
é também determinada por uma outra e esta outra é
por sua vez por
outra, ect..
Depois de afirmar a identidade da vontade
com o intelecto do homem, e de ter negado que uma ou outra dessas
faculdades sejam alguma coisa fora das volições e idéias
particulares, Espinoza conclui no Livro II da “Ética” que o homem
age
apenas conforme a vontade de Deus. Entretanto, porque capaz de dominar
as emoções e compreender a natureza delas, ele é
um ser de liberdade. Mas só enquanto age com vista àquilo
que é, segundo a racionalidade, útil à vida da razão
ele alcança
essa liberdade que é, por sua vez, manifestação
necessária da essência divina.
Com efeito; No Livro V Espinoza restringe a
liberdade humana ao conhecimento de Deus, que é o ponto mais alto
que a
liberdade humana pode alcançar. É na medida em que adota,
de bom coração (=Amor intelectual de Deus) o determinismo
inelutável que alcança a condição de ser
livre. Esta percepção está em relação
direta com a identidade, ou antes conversão
feita por ele, entre “necessidade” e “liberdade”, de tal modo que ser
livre não é mais do que a condição de causa
adequada
dos próprios atos, embora efetivamente Espinoza tenha reconhecido
que “somos agitados de muitas maneiras pelas causas
exteriores e, semelhantes a onda do mar, agitados por ventos contrários,
nós flutuamos, inconscientes, da nossa sorte e de
nosso destino” . Desse modo, perguntemos: como então se dá
tal conversão?
Espinoza responde que para ser livre, seria
necessário que o homem só executasse ações
determinadas por sua própria
natureza (=racional) e não pelas causas exteriores, o que equivaleria
dependência, constrangimento, e portanto, não-liberdade.
É o que confirma na Carta 58 à Schuller: “Chamo livre
uma coisa que existe e atua pela única necessidade de sua natureza,
e constrangida aquela que é determinada por outra, a existir e agir”.
Portanto, para ser livre basta consentir na necessidade, dizer sim à
inevitável sucessão de causas e efeitos.
Nem tudo está perdido ao homem, no entanto.
Pois, ser efetivamente livre seria, para Espinoza, ser a causa adequada
dos
próprios atos. Mas que dizer, se o homem nem sempre é,
espontaneamente, a causa total de seus atos? Afinal, somos seres
finitos e frágeis na natureza, e somos inicialmente escravos
na medida em que nossos atos exprimem nosso medo de tudo o que
nos ameaça muito antes de refletir nossas vontades . Como chegará
a libertar-se?
À esse problema Espinoza propõe
a “sabedoria” antiga como a solução. Ou seja, para ser livre
no Universo, basta aceitar
o Universo; não podemos ter tudo o que desejamos. Como tal,
nos libertamos na medida em que nos resignamos a aceitar o
que temos. E diante das coisas indesejáveis que nos acontecem,
podemos aceitá-las pela inteligência, compreender que tudo
o
que nos acontece é necessário e também concordar,
através da inteligência, com essa necessidade inelutável.
Este é, para o
filósofo, o caminho e garantia de libertação para
o homem.
E se a infelicidade abater ao homem, quando
ele tiver compreendido que o encadeamento das causas e dos efeitos no
universo torna inevitável essa infelicidade, ele estará
então pacificado. Porque assim deixa de padecer, de focalizar o
sofrimento sob a ângulo limitado de sua individualidade, para
considerá-lo do ponto de vista da totalidade, do ponto de vista
da ligação entre todas as coisas. No Livro I encontra-se
a justificação dessa percepção: “tudo decorre
da eterna determinação
de Deus, com a mesma necessidade que decorre da essência do triângulo
ser a soma de seus três ângulos igual a dois retos” .
3.1- Liberdade Humana e o Ato gratuito
Vale lembrar primeiro o que veio a ser livre-arbítrio
no pensamento moderno. Bossuet assinalava que para sentir
evidentemente nossa liberdade, é preciso experimentá-la
em coisas em que não haja razão alguma que nos faça
tender mais
para um lado do que para outro.
Com efeito, Espinoza está longe
de atender à essa concepção. Para ele, a liberdade
se reduz à consciência da
necessidade, à qual temos de nos resignar. Pois, embora seja
o homem capaz de atos gratuitos, não prova que ele o seja
verdadeiramente, pois, talvez seja determinado por motivos inconscientes.
Porque, segundo diz, “A ilusão do livre-arbítrio
provém da consciência de nossa ação juntamente
com a ignorância das causas que nos fazem agir" .
Espinoza vai mais além, exemplificando
que “o homem em estado de embriaguez acredita que tagarela por sua livre
vontade, quando, ao contrário, ele seria bem incapaz de resistir
ao impulso e, quando se tiver curado da embriaguez, lamentará
suas palavras inconsideradas” .
3.2- A escravidão das Emoções e a Libertação do Homem
Na última parte da Ética
Espinoza analisa as emoções com o intuito de descobrir quais
delas são fonte de escravidão para
o homem e quais delas são conformes à razão e
portanto próprias do homem livre.
Com efeito, segundo Espinoza existem emoções
que por si mesmas sempre boas, como a alegria, a jovialidade; outros que
são em si mesmas más, como a tristeza, a melancolia,
o ódio; outras que são boas ou más, conforme a sua
mistura, como o
amor e o desejo. Consequentemente, o homem que vive de acordo com a
razão não responde a coisas como ódio com ódio,
desprezo com desprezo, etc., mas “opõe o amor e a genorosidade
a essas emoções más”. E diz mais,
Quem sabe bem que tudo deriva da necessidade da divina natureza e acontece
segundo as leis e as regras eternas da natureza,
decerto nuca encontrará nada que seja merecedor de ódio,
de riso ou de desprezo, nem terá compaixão de ninguém;
mas, no
que lhe compete, a virtude humana esforçar-se-á por agir
bem, como se diz, e por ser alegre
Conluindo:
Portanto, Espinoza conclui que seguir a razão significa para
o homem ser ativo, ter idéias adequadas, caminho da verdadeira
liberdade. A emoção, contrariamente, é uma
idéia confusa e não é nunca um absoluto poder do homem,
por este ser uma
parte da natureza e consequentemente ter as suas emoções
determinadas também pelas outras partes da natureza. É, pois,
o
homem que domina as emoções que é livre. A vida
da liberdade abre-se na vida razão. O homem deixará de ser
escravo na
medida em que compreende suas próprias emoções
e age com vista ao útil.
Referências Bibliográficas
ESPINOZA, B. Éica. in: Os Pensadores, RJ: Editora Abril, 1979.
(idb) Edição
Ediouro, Col. Universidade. RJ, 1987, 201 pp.
ABBAGNANO, N. História da Filosofia, vol. VI. Lisboa: Editorial
Presênça,
1970, 243 pp.
FRAILE, G. Historia de la Filosofía. Vol. III Madri: La Edit.
Catolica, 1946,
pp. 587-646.