1. Natureza da questão
Em 1872 Friederich Nietzsche publicou n'O Nascimento da Tragédia como tributo ao amigo Richard Wagner, pouco depois que este trouxera à lume a tão aclamada peça musical Tristão e Isolda. Nietzsche apresenta este drama wagneriano como o renascimento da tragédia grega, um despertar “dionisíaco” que projetava luz sobre a origem da tragédia grega, isto é, sobre esse espírito dionisíaco que é o da própria música . A obra pretende então ser, a meu ver, uma estética existencialista dessa percepção.
Nietzsche introduz nessa estética dois
princípios a que dás o nome de dois deuses gregos, Apolo
e Dionísio, que encarnam, a seu ver, duas “pulsões artísticas
da natureza” que se manifestam na vida humana por meio de estados psicológicos.
O sonho
manifesta e satisfaz a pulsão de Apolo, e a embriaguez, a pulsão
de Dionisio. Na contemplação serena do sonhador que deixoude
lutar e de querer, Nietzsche vê o “princípium individuationis”;
e desse modo, Apolo será o deus da individualidade, da consciência,
da medida. Já a emriaguez dionisíaca, pelo contrário,
rasga esse “véu de Maya” da individualidade e essa ilusão
da consciência, do “conhece-te a ti mesmo”, para celebrar de maneira
selvagem a reconciliação do homem com a natureza. Eis como
ele põe isso na obra em epígrafe: "O homem já
não é artista, tornou-se obra de arte: o que se revela aqui
no estremecimento da embriaguez é, em vista da suprema voluptuosidade
e do apaziguamento do Uno originário, o poder artista da natureza
inteira" .
Do ponto de vista da da metafísica
da estética, Nietzsche inaugura uma nova forma de entendimento da
arte como um
todo. Para ele, a partir dessa “unidade essencial” a arte encontra-se
em cada coisa, e a natureza, na medida em que é criação,
nascimento e morte, é ela própria artista. A obra da
arte já não será uma imitação da natureza
criada; mas antes é o artista que
imita a natureza, mas num sentido novo, pois ela apenas encarna as
pulsões artísticas da natureza. Á luz da não-medida
dionisíaca, esta é em essência contradição
e dor, por ser poder de criação e metamorfose. O homem
dionisíaco que perde sua identidade individual no êxtase,
empolgado pelos cantos e danças das festas em honra a Dionísio,
descobre o Uno originário, a “vontade” única e eterna por
detrás do nascimento e morte dos fenômenos individuais. Desse
modo, para Nietzsche a música é arte dionisíaca por
excelência, pois é ela que faz exprimir o querer como unidade,
ao contário da escultura (e com ela o próprio Olimpo) que
eram meras criações apolíneas. E também por
essa razão a música não é e nem pode ser, para
o filósofo, parte das belas-artes e nem dá o prazer próprio
das belas formas.
2. Apolo, Dionísio e a vida na Grécia antiga.
Essas duas pulsões da natureza são
reveladas, segundo Nietzsche, com grande clareza no próprio mundo
histórico dos
gregos. Se antes a arte grega caraterizava-se, como julgava Schiller,
pela “ingenuidade” feliz de homens ainda em comunhão
com a natureza, a descoberta da pulsão dionisíaca permite
corrigir tal interpretação. Para Nietzsche a nobre simplicidade
e a
grandeza calma dos heróis e dos deuses não passam de
uma invenção ingênua, pois, de fato, a serenidade dos
deuses do
Olimpo apenas serve para enconbrir e superar uma visão aterradora
da essência da própria natureza. Diz textualmente: “Para
que a vida lhes fosse possível, era de todo em todo imprescindível
que os gregos criassem deuses”.
Por outro lado, as ilusões agradáveis
da poesia épica de Homero só permitiram aos gregos triunfar
da profundidade terrífica de sua concepção do mundo
e apaziguar seu sentido exacerbado do sofrimento. Por isso para Nietzsche
Homero por exemplo não passa de um artista “ingênuo”, no sentido
do artista que pinta possuido por uma êxtase . Pois, embora a pulsão
dionisíaca
evoque os Titãs vencidos pelos deuses do Olimpo, só a
pulsão apolínea, contudo, confere seu sentido à
dor dionisíaca, agora
justificada pela visão apaziguadora, pela imaginação
libertadora que ela fez nascer.
No centro da realidade apolínea da medida
econtra-se, segundo Nietzsche, o descomedimento, a desmesura, o caos
titânico da natureza primitiva, sempre como uma possibilidade
ameaçadora. Partindo dessa visão “hybrica” da vida
grega,
Nietzsche vislumbra então a natureza como pura contradição
e dor, por ser ela poder de criação e metamorfose. E o homem
dionisíaco que perde sua identidade individual no êxtase
dionisíaco, empolgado pelos cantos e danças das festas em
honra ao
“herói” olímpico, descobre o Uno originário, como
já dito, a “vontade” única e eterna por trás do nascimento
e morte dos
fenômenos individuais. E a música será, portanto,
a arte dionisíaca por excelência, a que exprime o querer em
sua unidade, ao
passo que as outras criações (como as esculturas, por
exemplo) eram criações apolíneas .
A experiência dionisíaca parece
conduzir o filósofo à um novo e “revolucionário” julgamento
estético, além de uma nova
concepção de individualismo. Para Nietzsche o indivíduo
é adversário da arte. Esse, na medida em que está
mergulhado na
individualidade, só se liberta do seu eu individual pela via
artística. O artista dionísiaco (=o músico) faz-se
espelho da vontade,
enquanto o artista apolíneo converte-se num veículo por
intermédio do qual a vontade se liberta na aparência. Daí
a forma
essencial que registra à página 61 : “Somente enquanto
fenômeno estético é que a existência e o mundo,
eternamente, se
justificam”.
Sabe-se entretanto que os gregos não
ficaram só na oposição de Apolo e Dionísio,
mas também souberam reconciliar a
contemplação das imagens e a experiência originária
em sua obra-prima, a tragédia ática . Para entender essa
misteriosa
reconciliação Nietzsche conduz uma vez mais à
origem da tragédia grega, ao côro dos sátiros e ao
ditirambo dos servidores de dionísio (como de resto é tradição
fazer-se). Esse côro dos sátiros representa uma primeira “projeção”e
uma primeira "alucinação” consoladora. Para o filósofo,
o homem grego, tomado que estava pelo êxtase dionisíaco, corria
risco de sucumbir
à aversão à vida, pois “uma propensão
ascética para negar o querer é o fruto dos estados dionisíacos”,
diz . Ao mergulhar o olhar no terrível abismo do ser, o homem dionisíaco
ia renunciando a ação, pois essa visão mata a ilusão
necessária à ação.
Entretanto com a arte trágica, como “um mágico que salva
o que cura”, consegue transformar essa aversão ao horror e
ao
absurdo da existência em imagens capazes de tornar a vida possível.
As imagens do horror serão sublimes e as imagens do
absurdo, cômicas. Desse modo o côro satírico do
ditirambo é um ato salvador da arte grega. Nietzsche achava mesmo
que a
multidão em suas reuniões tomadas de emoção
dionisíaca voltara as costas a civilização -
“essa mentira que pretende ser a
única realidade” -, mas graças essa viragem viu surgir
diante de si esse espelho do côro satírico em que ela assiste
à sua
própria metamorfose . Os sátiros, de lendária
potência sexual, seriam os seres de natureza fictícia que
conduziram o cidadão
ateniense para fora dos limites da cidade e da individualidade, no
seio da natureza , o meio pelo qual “a vontade ávida sempre encontra
um meio, graças a uma ilusão espraiada sobre as coisas, para
manter suas criaturas na vida e força-las a continuar a viver”
.
É a partir daí que para Nietzsche
nasce, no côro sátiro, uma segunda alucinação
coletiva de natureza apolínea, épica, de
imagens em que a emoção dionisíaca se descarrega
e explode como uma girândola, um balão de incontidos fogos
artificiais em
explosão de vida. A tragédia propriamente dita, ou seja,
o “drama”que se representa em cena (mythos, na terminologia
platônica), será apenas pobre materialização
apolínea do estado dionisíaco, pois o que se vê em
cena já não será mais outra
coisa senão o herói trágico que é apenas
uma máscara do próprio Dionísio, o deus das metamorfoses.
Tragédia então é isso:
“reconhecimento da unidade da vida como vontade, a alegria que nasce
do espetáculo de aniquilamento do indivíduo, a arte como
pressentimento jubiloso da unidade reencontrada” .
Este é o ponto em que a união
entre Dionísio e Apolo começa a alterar-se. Com efeito, esta
ruptura se dá quando o coro,
agora sob a regência teórica de Eurípedes, abandona
a orquestra misturando-se aos atores e assim marcando o seu próprio
desaparecimento. O fato abre espaço para o reinado da inteligência
das massas nas arquibancadas. Sob a influência “maligna”
disso que Nietzsche prefere chamar de “socratismo” de Eurípedes
(por ter Sócrates como seu juiz e mestre) a tragédia
agoniza e perece. E qual a razão? Para Nietzsche Eurípedes,
não abstante sua tardia homenagem das Bacantes, quis separar a
tragédia de sua origem, a música, essa estrada em que
Dionísio circula até ao espírito do homem agonizante,
arrebatando nele
a vontade de poder. A contemplação do coreta e do rapsodo
épico degrada-se desde então em pensamentos frios e
paradoxais, e a êxtase avilta-se em paixões baixas, teatrais,
em patético. Assim, sob o látego de seus silogismos,
a dialética otimista expulsa a música da tragédia.
É o mesmo que dizer que ela destroi a essência da tragédia,
a qual só pode ser nterpretada como a manifestação
e a transposição em imagens de estados dionisíacos,
como a simbolização visísivel da música, como
o mundo onírico que a embriaguez dionisíaca suscita , conclui
Nietzsche.
Finalmente, de quanto aqui fica evidente, não
me parece forçosa a conclusão de que para Nietzsche a tragédia
grega é mais do que celebração do espírito
da música inspiradora; é a própria descoberta da vida
como superabundância de forças, como
natureza artísitica e poder de metamorfose no teatro da vida
real. Pois, a mais alta missão da arte, da arte dionisíaca,
é segundo o filósofo “libertar nossos olhos do olhar que
mergulharam nos terrores da noite e salvar o individuo das convulsões
da vontade pelo bálsamo salutar da aparência”.